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Desafios e Oportunidades na Gestão de Resíduos Urbanos: Uma Perspetiva de Mudança para a Próxima Década

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A gestão de resíduos urbanos em Portugal é historicamente errática e ineficiente, principalmente quando comparada com os nossos pares europeus. Prova disso foi o Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos (PERSU 2020) onde falhamos praticamente em toda a linha: desde a estratégia ao cumprimento das metas definidas. Assim, é com esta herança pesada e onerosa que enfrentamos a próxima década, uma década de enormes desafios para o setor e que se encontram devidamente explanados no Plano Estratégico recentemente publicado, o PERSU 2030, que além de apresentar medidas e objetivos ambiciosos, fixa metas quase utópicas ao nível da redução da produção total de resíduos e do aumento das taxas de reciclagem.

Neste artigo de opinião, pretendo explorar os principais desafios enfrentados ao nível da gestão de resíduos urbanos, bem como as oportunidades que eles trazem para a implementação de soluções inovadoras.

Desafio 1: A Prevenção da Produção de Resíduos Urbanos

A Prevenção é um dos desígnios do PERSU 2030 num perfeito alinhamento com a estratégia comunitária e com a hierarquia da gestão de resíduos. A este nível, é necessário promover práticas de consumo consciente, conceber produtos e embalagens mais sustentáveis (ecodesign), combater o desperdício alimentar, fomentar a compostagem caseira/comunitária e estimular o desenvolvimento de espaços de reparação e trocas peer-to-peer, em particular para os resíduos têxteis, mobiliário e equipamentos elétricos e eletrónicos, onde os ecocentros poderão assumir um papel relevante e diferenciador.

Estas são oportunidades-chave para reduzir a produção e a perigosidade dos resíduos urbanos, bem como promover uma mentalidade de reutilização, impulsionando uma abordagem circular onde o melhor resíduo é aquele que não é produzido.

Desafio 2: Os Sistemas de Recolha e a Aposta em Novos Fluxos

Em Portugal, os sistemas de recolha têm evoluído ao longo das duas últimas décadas, com o objetivo de promover a reciclagem, minimizar a deposição em aterro e adotar práticas mais sustentáveis de gestão de resíduos. Porém, os resultados operacionais dos modelos convencionais, baseados em equipamentos de deposição coletiva instalados na via pública, tendem para a estagnação, apresentando crescimentos marginais que comprometem o cumprimento das metas fixadas para 2030.

A oportunidade passa por repensar os atuais sistemas de recolha numa abordagem multidimensional e colaborativa, tornando-os mais próximos e cómodos para os clientes, não negligenciando claro as condições urbanísticas dos territórios, os aspetos sociodemográficos, ambientais, económicos e tecnológicos. Incentivar a participação ativa dos cidadãos, ouvindo as suas opiniões e preocupações, aumentará o envolvimento da comunidade e contribuirá para a identificação de sistemas de recolha seletiva mais eficientes e resilientes.

Este desafio ganha contornos mais complexos uma vez que nos próximos anos seremos obrigados a introduzir novos fluxos para recolha, nomeadamente os resíduos alimentares, têxteis, volumosos e os pequenos resíduos perigosos domésticos, tais como pilhas, tinteiros, entre outros.

Assim, tirando proveito de fazemos parte de uma europa “sem fronteiras”, devemos olhar para as tendências e para as boas práticas nesta área, uma vez que não nos resta grande margem para erros. A este nível, destaco a importância da aposta na recolha seletiva porta-a-porta, que permite um maior controlo sobre a qualidade dos resíduos, bem como na sensorização e na Internet of Things (IoT) que têm desempenhado um papel preponderante nos sistemas de recolha de resíduos, onde os sensores instalados nos contentores e viaturas de recolha, permitem monitorizar o nível de enchimento, registar os contentores recolhidos, otimizar as rotas de recolha com base em dados em tempo real e reduzir o número de recolhas desnecessárias.

Desafio 3: A Gestão dos Biorresíduos

Os biorresíduos, constituídos pelos resíduos alimentares e pelos resíduos verdes, representam uma parcela significativa dos resíduos urbanos em Portugal (cerca de 37%), sendo um fluxo que o PERSU 2030 considera de intervenção prioritária, uma vez que a recolha seletiva de biorresíduos em Portugal Continental será obrigatória a partir de 1 de janeiro de 2024.

Por outro lado, a gestão deste fluxo, nomeadamente dos resíduos alimentares, é muito desafiante devido às características inerentes ao resíduo alimentar que é húmido, liberta odores e atrai vetores, fatores que se tornam ainda mais críticos no sul da europa, nomeadamente no período do verão e que impactam diretamente com a adesão e participação da população.

Assim, a gestão deste fluxo carece de uma estratégia multinível que priorize a prevenção, seguida do tratamento local, da recolha seletiva e do tratamento centralizado. Ao nível da prevenção, importa atuar no desperdício alimentar, promovendo projetos em toda a cadeia de valor. No caso do tratamento local devem ser estimulados projetos de compostagem caseira e comunitária, bem como soluções locais de desidratação de resíduos. No que respeita à recolha seletiva, deverá ser privilegiada a recolha seletiva porta-a-porta ou a recolha seletiva de proximidade utilizando contentores com controlo de acessos, permitindo assim captar mais resíduos e com maior qualidade. A este nível deverá também ser avaliada a viabilidade de utilização de sacos compostáveis e/ou biodegradáveis, bem como minimizar a presença de plásticos convencionais que impactará o tratamento e a qualidade do composto orgânico. Por último, e no que concerne ao tratamento centralizado, as opções são várias sendo as apostas mais convencionais a compostagem e a digestão anaeróbia, que resultarão em subprodutos com valor comercial, o composto/digerido e o biogás.

Ao nível estratégico, existe ainda um elevado potencial no que respeita à introdução de infraestruturas de tratamento locais e descentralizadas, havendo aqui espaço também para a iniciativa privada.

Desafio 4: Os Aterros e a Gestão da Fração Resto

Em Portugal, cerca de 60% dos resíduos urbanos são colocados em aterro, o que coloca uma enorme pressão sobre estas infraestruturas, havendo regiões que poderão enfrentar situações críticas de incapacidade de deposição em aterro face aos volumes atualmente disponíveis, nomeadamente na região centro e norte, já a partir de 2025 e 2027, respetivamente.

Este aspeto torna-se ainda mais preocupante dado que há vários anos que as políticas de resíduos deixaram de priorizar a construção de aterros, essencialmente devido à ausência de financiamentos comunitários para estes investimentos.

Face a esta realidade, o PERSU 2030 vem fixar que, até 2035, a quantidade de resíduos urbanos depositados em aterro deve ser reduzida para um máximo de 10 % da quantidade total de resíduos urbanos produzidos, em peso.

Esta meta, que teve por base pressupostos demasiado ambiciosos, coloca naturalmente uma pressão acrescida ao nível da gestão da fração resto, ou seja, os resíduos que não são recicláveis ou compostáveis, que carece de uma visão holística e de uma forte aposta em soluções de valorização desta fração enquanto recurso, através da adoção das melhores tecnologias disponíveis, a produção de gases, combustíveis e outros químicos renováveis ou de baixo teor de carbono, a obtenção de outros subprodutos de alto valor acrescentado onde se inclui a produção de energia, desde que em estreito alinhamento com a promoção da descarbonização e com os objetivos da neutralidade climática, que assumem também um caráter prioritário.

A estratégia do anterior PERSU 2020 para esta área falhou praticamente em toda a linha, nomeadamente ao nível da produção de Combustível Derivado de Resíduos (CDR), tendo sido efetuados investimentos avultados com um retorno baixo, para não dizer inexistente, porque o CDR produzido não cumpria os parâmetros mínimos de qualidade para ser absorvido pelo mercado (essencialmente cimenteiras). Ainda há esperança, com uma forte aposta na recolha seletiva de biorresíduos, que retirará os altos teores de humidade da fração resto e aumentará o seu poder calorífico, é possível alavancar novamente a estratégia do CDR e rentabilizar as infraestruturas existentes.

Também nesta área será fundamental equacionar a necessidade de investimentos ao nível da valorização energética, nomeadamente na zona centro do país.

Desafio 5: O Financiamento e a Sustentabilidade do Setor

Atendendo ao esforço de adaptação que é exigido ao setor para cumprimento das metas comunitárias definidas, quer ao nível do investimento, quer ao nível da exploração, importa considerar medidas que garantam a sustentabilidade financeira do sistema, tanto ao nível dos Sistema de Gestão de Resíduos Urbanos (SGRU), como dos municípios.

Ao nível do investimento, prevê-se que se faça através de três fontes distintas: (1) Pacote financeiro previsto no âmbito do Portugal 2030 (PT 2030), com verbas afetas para a área dos resíduos e economia circular, já devidamente distribuídos para investimentos na alta e na baixa; (2) Devolução da Taxa de Gestão de Resíduos (TGR) ao setor para reinvestimento em projetos que promovam a recolha seletiva e tratamento na origem de biorresíduos; (3) Modelação da componente dos Valores de Contrapartida (VC), aplicados pelas entidades gestoras de fluxos específicos de resíduos, no contexto da responsabilidade alargada do produtor, que cubra os custos desde a recolha do resíduo (incluindo a necessária capilaridade da rede de recolha) até seu encaminhamento para tratamento em operador final.

No que concerne à exploração, o desafio é hercúleo, sendo fundamental encontrar um equilíbrio entre as receitas provenientes das tarifas de resíduos e os custos operacionais, garantindo a sustentabilidade económica do sistema de gestão de resíduos.

Em Portugal constata-se que a “cobertura dos gastos”, indicador que avalia a sustentabilidade da gestão do serviço em termos económico-financeiros no que respeita à capacidade da entidade gestora repercutir os custos com a atividade nos utilizadores, é claramente insatisfatório nos sistemas de gestão em baixa (municípios), registando-se um decréscimo desde 2017, situando-se agora nos 76%.

Acresce que existem ainda cerca de 50 municípios em Portugal, que optam por não repercutir os custos da gestão dos resíduos urbanos criando já a curto prazo um problema financeiro para estas entidades, face à previsível subida de custos induzida pelo aumento da TGR, a qual penaliza a deposição em aterro e a incineração, e aos investimentos que serão necessários para incrementar a recolha seletiva.

É neste contexto deficitário, que os municípios terão de efetuar investimentos nos sistemas de recolha que permitam dar respostas aos desafios e às metas impostas no PERSU 2030, das quais destaco a recolha seletiva de biorresíduos. Para além dos investimentos que são necessários, esperemos que estejam devidamente reforçados em termos de verba no PT 2030, os custos de exploração irão aumentar impactando por consequência o défice de tarifário municipal. Em complemento, os municípios enfrentarão também um outro desafio relacionado com a necessidade de atualização dos contratos de recolha, que além de serem processos demasiado rígidos e burocráticos em Portugal, carecerão de uma maior colaboração e entendimento entre os municípios e os prestadores de serviços ao nível da negociação.

Importa incentivar a total recuperação de custos por parte dos municípios salvaguardando a acessibilidade económica dos utilizadores, bem como a promoção de regimes de Pay-as-You-Throw (PAYT) e equivalente, não esquecendo que o contributo da tarifa para a recuperação de custos deve ser equilibrado quanto às demais parcelas contributivas. A este nível, o PERSU 2030 vem estabelecer que a partir de 1 de janeiro de 2025, deve passar a ser obrigatória a aplicação de regimes PAYT ou equivalente junto do comércio, restauração e indústria. A partir de 1 de janeiro de 2030, a prática daquele regime deve ser estendida a todos os produtores.

Em suma, a sustentabilidade do setor dos resíduos exige um forte equilíbrio entre os custos e os proveitos dos SGRU e Municípios que, a não ser conseguido, pode ter consequências no aumento das tarifas aplicadas ao cidadão e outros produtores de resíduos ou no incumprimento das metas com que Portugal está comprometido.

Desafio 6: O Envolvimento do Cidadão

O envolvimento ativo do cidadão é fundamental para o sucesso dos sistemas de gestão de resíduos. Em Portugal é habitual desenvolverem-se campanhas de comunicação e sensibilização de âmbito nacional, regional e local, que habitualmente acompanham os projetos que estão a ser implementados no terreno. Esta prática permitiu aumentar a cultura ambiental das empresas e dos cidadãos em geral, mas claramente que precisamos de repensar este modelo uma vez que não se reflete ao nível das quantidades de recicláveis recolhidas, que se encontram perto da estagnação.

Precisamos de promover um maior envolvimento do cidadão, incentivando a sua participação ativa, auscultando as suas opiniões e preocupações por forma a refletir isso nas estratégias municipais. Isso não retira a importância das campanhas de comunicação e sensibilização, que são fundamentais e que devem ser cada vez mais próximas do cidadão. Promover a participação ativa dos cidadãos, através de iniciativas de limpeza e recolha de resíduos em espaços públicos, praias e áreas naturais, são exemplos de iniciativas que fortalecem o sentimento de responsabilidade coletiva.

No que concerne aos canais de comunicação, precisamos que sejam claros, normalizados e acessíveis, para que o cidadão possa obter informações sobre a gestão de resíduos, esclarecer dúvidas e fornecer feedback sobre o sistema implementado.

Desenvolver programas de incentivo e recompensa para os cidadãos que se destacam pelo seu comportamento ambiental, nomeadamente na correta separação dos resíduos, é também uma das medidas que deve ser equacionada nas estratégias de envolvimento do cidadão.

A este nível, os SGRU e os Municípios têm de apresentar à Agência Portuguesa do Ambiente (APA), até ao final do mês de novembro de 2023, o plano de ação para cumprimento do PERSU 2030, designados por PAPERSU. Estes documentos devem também eles serem participativos o que permitirá um diagnóstico mais realista, medidas mais consensuais e percetíveis e uma maior participação por parte da população, que irá rever-se na estratégia.

Em conclusão, perante o panorama descrito sobre a gestão de resíduos urbanos em Portugal, os desafios e oportunidades que se afiguram para a próxima década, é inegável a necessidade de uma abordagem proativa e inovadora. O Plano Estratégico PERSU 2030 representa uma oportunidade única para implementar medidas ambiciosas e eficazes que promovam a prevenção, a recolha seletiva, o tratamento adequado dos resíduos e o envolvimento ativo do cidadão. É imperativo que o estado, as entidades gestoras e a sociedade civil trabalhem em conjunto, adotando uma visão holística e colaborativa, para superar os desafios e garantir um futuro mais sustentável e próspero para as gerações vindouras. O sucesso dessa missão dependerá do comprometimento, da inovação e do envolvimento de todos os stakeholders, visando um objetivo comum: uma gestão de resíduos urbanos mais eficiente, responsável e alinhada com os Objetivos Desenvolvimento Sustentável (ODS).

João Moreira

Fundador e Consultor na SBB Consulting

Nota: os artigos publicados na secção opinião são da inteira responsabilidade dos seus autores